Segundo Sueli Carneiro (2003, p. 117) o movimento de Mulheres do Brasil é um dos mais respeitados do mundo. Seus avanços mostram-se em muitos aspectos, como encaminhamentos formalizados na legislação, a exemplo de 80% da aprovação de suas demandas na constituição de 88; a aprovação de projeto de lei que instituiu reserva de 20% da legendas dos partidos para as candidatas mulheres; trazer a discussão da violência doméstica ao debate coletivo, pautando e construindo políticas públicas específicas; a discussão e progressiva ampliação dos direitos sexuais e reprodutivos; as lutas por anistia, por creche, pela descriminalização do aborto, dentre outros.
No entanto, é preciso considerar que quando se fala de qualquer grupamento humano de forma generalizante, comumente, esse grupo é branco. Confirma-se, pois, que paralelo ao quadro apresentado, os salários das mulheres negras ainda são inferiores aos dos homens negros, que recebem menos que as mulheres brancas, cuja faixa salarial está abaixo da dos homens brancos. Os altos índices de violência contra a mulher são alarmantes, especialmente crescentes no caso das mulheres negras, segundo dados do Mapa da Violência 2015, citados no item 1.2 do primeiro capítulo deste trabalho. Apesar disso, não devemos perder de vista as conquistas dos movimentos que nascem das lutas e demandas cada vez mais populares.
O movimento de mulheres negras, por exemplo, tem se debruçado inclusive sobre a construção de instrumentos e práticas que garantam políticas de bem viver realmente para toda a população, já que, segundo Carneiro (2003, p.118), as concepções eurocêntricas e universalizantes estiveram e estão presentes no feminismo brasileiro, assim como em outros movimentos sociais, direcionando as estratégias de enfrentamento às desigualdades em benefício de uma parcela branca e privilegiada. Nossa autora salienta:
As denúncias sobre essa dimensão da problemática da mulher na sociedade brasileira, que é o silêncio sobre outras formas de opressão que não somente o sexismo, vêm exigindo a reelaboração do discurso e práticas políticas do feminismo. E o elemento determinante nessa alteração de perspectiva é o emergente movimento de mulheres negras sobre o ideário e a prática política feminista no Brasil. (CARNEIRO, 2003, p.118)
Carneiro (2003, p.118) chama essa insurgência de mulheres negras organizadas, antes participantes individuais do movimento feminista, como “enegrecer o feminismo”, contudo, salientamos que, mulheres negras não estão simplesmente enegrecendo algo que é branco, mas reivindicando autoria, construindo agenciamentos, rasurando e reescrevendo as concepções eurocêntricas e patriarcais que permeiam inclusive o Movimento Negro, redimensionando a condição do ser mulher, negra e, muitas vezes, pobre, contribuindo simultaneamente para o avanço da luta antirracista e das mulheres no Brasil.
Segundo Ângela Davis (2017, p. 36), mulheres brancas que acreditam ser salvadoras das mulheres negras reproduzem o racismo, muitas vezes impedindo o avanço do movimento. Segundo ela, pensar a sociedade a partir de demandas de quem está no centro do cruzamento das opressões, metáfora utilizada por Kimberlé Crenshaw (2004, p. 177) para explicar interseccionalidade, permite que essas políticas abranjam outros segmentos da sociedade. O que não necessariamente ocorre quando o contrário acontece. Em suas palavras: “O avanço das mulheres de minorias étnicas quase sempre dá início a mudanças progressistas para todas as mulheres” (DAVIS, 2017, p. 36), já que, englobam enfrentamento de múltiplos aspectos das “interconexões propositais” entre opressão racial, de gênero e econômica. Carneiro evidencia:
[…]Essas óticas particulares vêm exigindo, paulatinamente, práticas igualmente diversas que ampliem a concepção e o protagonismo feminista na sociedade brasileira, salvaguardando as especificidades. Isso é o que determina o fato de o combate ao racismo ser uma prioridade política para as mulheres negras, assertiva já enfatizada por Lélia Gonzalez, “a tomada de consciência da opressão ocorre, antes de tudo, pelo racial”. (CARNEIRO, 2003, p.119)
Nessa perspectiva, uma das principais lutas do movimento de mulheres negras é contra o genocídio da população negra que mostra sua marca expressiva nos altos índices de assassinatos de jovens negros entre 15 e 29 anos[1], a exemplo dos movimentos de mães em todo o país, como o das Mães de maio, Mães de Acari, Mães de Manguinhos, dentre outras, que têm se articulado, inclusive a nível mundial, através do Encontro da Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado, criado em 2016, reivindicando justiça e pautando a necessidade de políticas públicas de combate à violência policial e extermínio. Sendo assim,
A fortiori, essa necessidade premente de articular o racismo às questões mais amplas das mulheres encontra guarida histórica, pois a “variável” racial produziu gêneros subalternizados, tanto no que toca a uma identidade feminina estigmatizada (das mulheres negras), como a masculinidades subalternizadas (dos homens negros) com prestígio inferior ao do gênero feminino do grupo racialmente dominante (das mulheres brancas). (CARNEIRO, 2003, p.119)
A necessidade de articular as experiências de mulheres negras a uma leitura que contemple a raça e, do mesmo modo, o gênero, principalmente na construção de ferramentas de combate às opressões interconectadas vem da própria existência desse atravessamento, e não o contrário. Quando se trata das escolhas das bandeiras dos movimentos feministas, em geral, as pautas levantadas consideram as mulheres brancas e, nos movimentos negros, as pautas geralmente dizem respeito aos homens negros, as mulheres negras, sistematicamente, não são contempladas nem em uma nem em outra luta. Neste sentido, se não pautarmos nossas demandas compreendendo de que local falamos e quantos atravessamentos mais são possíveis contemplar, continuaremos favorecendo a construção de estratégias políticas de interesse quase que exclusivo de determinados grupos. Sendo assim,
A consciência de que a identidade de gênero não se desdobra naturalmente em solidariedade racial intragênero conduziu as mulheres negras a enfrentar, no interior do próprio movimento feminista, as contradições e as desigualdades que o racismo e a discriminação racial produzem entre as mulheres, particularmente entre negras e brancas no Brasil. O mesmo se pode dizer em relação à solidariedade de gênero intragrupo racial que conduziu as mulheres negras a exigirem que a dimensão de gênero se instituísse como elemento estruturante das desigualdades raciais na agenda dos Movimentos Negros Brasileiros. (CARNEIRO, 2003, p.120)
As lutas feministas no campo do mercado de trabalho, por exemplo, têm apresentado grandes avanços, entretanto não o suficiente para dissolver as desigualdades raciais para o maior avanço de mulheres negras, mostrando que as concepções universalizantes do feminismo branco, em verdade, tratam-se especificamente de mulheres brancas e de classe média, necessitando abordagens mais plurais em que as pautas das mulheres negras e indígenas, por exemplo, sejam contempladas.
Entretanto, destaca Carneiro (2003, p.120) que nem sempre essa concepção da discussão racial está presente nos discursos feministas e que ainda impera muito do senso comum, inclusive a respeito do mito da Democracia Racial no país. Para que tal movimento continue avançando, no sentido da efetivação de laços de solidariedade, é necessário que “o combate ao racismo, à discriminação racial e aos privilégios que ele institui para as mulheres brancas seja tomado como elemento estrutural do ideário feminista” (CARNEIRO, 2003, p.121).
Nesse contexto, conforme os dados do Mapa da Violência 2015 (FLACSO BRASIL. Mapa da Violência, 2015), já apresentados nesse trabalho e outros instrumentos de análises de dados, podemos constatar que o recorte racial revela uma estrutura perversa no que tange à população negra em geral. Por exemplo, os níveis de homicídio, violência policial, encarceramento são consideravelmente superiores em relação aos jovens negros, comparado aos jovens brancos. Concomitante, em relação às mulheres negras, os altos índices de violência doméstica, feminicídio, estupros (inclusive letais), mortes durante o parto ou aborto, são não só maiores, mas em alguns aspectos crescentes de forma desproporcional, embora decrescente entre as mulheres brancas.
Por isso, ainda que, em alguns debates do movimento negro, uma das fortes críticas ao feminismo negro seja a de que a consideração do gênero como recorte estatístico enfraqueça a leitura do genocídio da população negra, a nosso ver, tais constatações estatísticas não descartam a necessária “sensibilidade interseccional” (AKOTIRENE, 2018) potência desse recorte. Muito pelo contrário, evidenciam que as relações raciais, por exemplo, não são abstratas, mas vividas entrelaçadas a gênero e classe, já que, constatamos, em relação a brancos e brancas, que a população negra enfrenta, em diversos aspectos, a subalternização e precarização. Constatamos que a raça é fator de genocídio do povo negro, que tem seus tipos de morte diferenciados através do gênero e intensificados mediante à classe, que quanto mais baixa, mais figura nesses altíssimos índices.
Podemos evidenciar o perigo da desconsideração da leitura racial, por exemplo, quando Ângela Davis (2017, p. 30-33) faz sua crítica ao conceito de “feminização da pobreza” que foi cunhado a partir do empobrecimento das mulheres brancas norte-americanas ignorando o fato de que mulheres e homens negros, muito antes, enfrentavam esses altos índices. Ao considerar as mulheres negras na categoria “mulher”, constataríamos os altos índices de empobrecimento da população feminina, entretanto, se considerássemos na categoria “negros”, perceberíamos que a pobreza não só já existia, mas se acentuou. Podemos depreender que, se fôssemos analisar a categoria mulheres negras separadamente constataríamos não só a pré-existência, mas um maior aprofundamento em relação aos homens negros e mais ainda em relação às mulheres e homens brancos.
Por isso mesmo, Sueli Carneiro, em seu artigo “Mulheres em Movimento”, conclui que “o protagonismo político das mulheres negras tem se constituído em força motriz para determinar as mudanças nas concepções e o reposicionamento político feminista no Brasil” (CARNEIRO, 2003, p.129). Podemos afirmar que tais concepções também têm representado um ganho para o Movimento Negro e reverberado na sociedade, de forma geral. Afinal, não estamos no mesmo barco! Talvez na mesma tempestade…
AUTORA
Rachel Nascimento é multiplicadora de Tetro das Oprimidas, professora da Rede Municipal de Educação do RJ e mestra em Relações Étnico Raciais e Educação.
REFERÊNCIAS
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro/Pólen, 2019.
CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: ASHOKA EMPREENDIMENTOS SOCIAIS; TAKANO CIDADANIA (Org.). Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, 2003. Disponível em: https://rizoma.milharal.org/files/2013/05/Enegrecer-o-feminismo.pdf . Acesso em: 15/03/2019.
______. Mulheres em movimento. Estud. av. São Paulo, v. 17, n. 49, p. 117-133, dezembro de 2003. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142003000300008&lng=en&nrm=iso>. acesso em 5 de junho de 2019.
DAVIS, Angela. “Atravessando o tempo e construindo o futuro da luta contra o racismo” [Palestra na Universidade Federal da Bahia, em 25/7/2017]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2vYZ4IJtgD0&t=5694s. 2h35min Acesso em: 05/04/2019.
______. Mulheres, Cultura e Política; Tradução Heci Regina Candiani. – 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2017.
______. Mulheres, Raça e Classe; Tradução Heci Regina Candiani. – 1 ed. – São Paulo: Boitempo, 2016.
CRENSHAW, K.W. A intersecionalidade na discriminação de raça e gênero. In: VV.AA. Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem, 2004.
FLACSO BRASIL. Mapa da Violência, 2015. Disponível em: http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf. Acesso em: 10 setembro de 2018